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26.8.13

Domingo no Goiamum

Prólogo
Esse menino sempre teve o costume de sair sem avisar. E também de não ligar informando o paradeiro, dizer onde vai dormir. E deixa a gente sem dormir. Mas dessa vez ele foi longe demais. Não tá com a namorada, e ela também não sabe dele. E parece que não quer saber e tem raiva de quem sabe. Dois dias! Dois dias sem notícias do ingrato.
  
Um branco no banco
O dia começou errado já de manhã. Lembro de Rubem Fonseca, tento esquecer o resto. E agora? Só faltava essa. Ônibus errado e sem saber ao certo onde desci. Era de se esperar que algum dia eu fosse pagar por desde menino só sair de carro, sempre lendo alguma coisa, sem prestar atenção na rua. Como assim ter duas linhas com o mesmo nome, mas com números diferentes? 509 e 518. É semioticamente estúpido. E agora estou aqui, longe da BR, perto de só deus sabe.
Ei, e não é que o lugar não é feio? Quem diria que daqui se pode ver o mar? Só ver mesmo. Porque até chegar na praia tem que fazer um arrodeio e tanto, contornando a mata. Mas a vista, grátis e à mão, é espetacular.
Um conjunto habitacional. Muito grande, muitos blocos. Será que consigo entrar? Mole. Quem tem medo de ser roubado onde não se tem nada a perder? Não existe segurança. Ou será que, ao contrário, só aqui é que é seguro? Devaneio. Deve ser o calor. Ou a fome. Ah, se fosse só isso...
É domingo e as pessoas estão em casa. Provavelmente o único dia em que muitos aqui podem aproveitar suas casas, a família, os vizinhos. Não estão vendo TV, nem distraídos com smartphones ou notebooks (por que não têm? Talvez...). Nos espaços entre os blocos de concreto implorando uma demão de tinta, crianças correm sem vigilância, som alto sai dos carros (provavelmente a aparelhagem de som vale mais do que os carros), mas as pessoas não dançam; conversam (gritando), bebem e comem churrasco. Som de domingo. São felizes.
Poucos notam a presença daquele estranho. Devem estar acostumados a ver playboys por ali em busca de droga ou outra distração mais ou menos ilegal.
Deixo o enorme condomínio. Cansado, sento numa calçada. Lembro de Augusto dos Anjos. Assombrado com minha sombra magra, pensava no destino.
À minha frente, no asfalto, noto que há mais de vinte minutos uma policial está sentada no banco do motorista da viatura. Tão entediada quanto eu, porém, pra sua sorte, só entediada mesmo. Penso que quem consome em sua dieta informativa apenas programas de TV sensacionalistas certamente acha que os “homens da lei” devem ser pessoas ultraocupadas, a todo momento livrando os “cidadãos de bem” dos “marginais”. Cadê a violência? Minha cabeça não está boa.
Uma segunda policial entra no banco do passageiro. Eu resolvo entrar no banco de trás. Definitivamente, minha cabeça não está boa. Elas se entreolham.
Hesitação. O intruso inesperado era branco e não estava mal vestido. Pelo menos, não do tipo mal vestido que não tem outra opção.
Daí a policial do banco do passageiro pergunta, num tom sério levemente intimidador, o que eu estava fazendo ali. Disse que dentro do carro parecia mais confortável que na calçada. Considerei que podia descansar na viatura, visto que ela foi comprada com nossos impostos. Ela respondeu, engraçadinho, podia te prender por desacato, e que era bom eu começar a falar sério. Falei que de repente se elas não tivessem nada pra fazer, que tal darmos um rolé? Dessa vez ela riu alto, a do banco do motorista também, que até então se mantinha inexpressiva. A gente vai agora pro posto aqui do bairro, te deixamos lá, disse a do banco do carona. Cuidado na vida, rapaz, se despediu, com um riso simpático, no posto policial do Goiamum. Como era grande aquele bairro! Ter cuidado na vida deu errado pra mim, moça, falo sozinho. Policiais nunca dão uma dentro.

Sigo andando. Estou numa espécie de parque, que me faz lembrar uma taba (como se eu já tivesse visto uma!). Todo aquele verde ao redor, aquelas pessoas alegremente estranhas, sinto vontade de chorar.
Vejo uma igreja tão antiga quanto bonita, apesar de mal cuidada. Creio que o entorno daquele templo barroco não mudou nada desde que ele foi erguido. Preservado pelo abandono. Ao me aproximar, porém, percebo que a igreja não está vazia. Acontece um casamento.
Sempre vivi nesta cidade e nem mesmo sabia que existia esse lugar. O problema sou eu ou o mundo?

Ladeira abaixo
Caminho mais entre aqueles prédios antigos e até esqueço do cansaço. Outras coisas são mais difíceis de não lembrar. Chego perto de uma falésia. Sento e contemplo o céu, que está ainda mais bonito do que em um fim de tarde comum. Penso nas aliterações de “crepúsculo” e “precipício”. Se eu estivesse lá embaixo, com certeza entraria na água. Há quanto tempo não vou à praia? Talvez dê pra descer essa barreira... Dá trabalho, me arranho, mas desço. A maré subiu. Anoiteceu. Me dou conta de que estou vestido, nos bolsos celular e carteira, mas o que lamento mesmo é ela não estar ali comigo pra sentir aquele cheiro quente e ácido de mar.

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