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26.9.10

"Magotes de crianças nuas, de hedionda magreza de esqueleto, de grandes ventres, obesos e lustrosos como grandes cabaças, lançavam olhares, terríveis de avidez, sobre pilhas de rapaduras, grandes medidas de quarta, desbordantes de farinha e feijão, pencas de bananas, rimas de beijus, alvíssimas tapiocas, montes de laranjas pequeninas e vermelhas, colhidas na véspera, nos pomares murchos de Meruoca.

Os míseros pequenos, estatelados ao tantálico suplício da contemplação dessas gulodices, atiravam-se às cascas de frutas lançadas ao chão, e se enovelavam, na disputa desses resíduos misturados com terra, em ferozes pugilatos. Era indispensável ativa vigilância para não serem assaltadas e devoradas as provisões à venda, pela horda de meninos, que não falavam; não sabiam mais chorar, nem sorrir, e cujos rostos, polvilhados de descamações cinzentas, sem músculos, tinham a imobilidade de couro curtido. Quando contrariados ou afastados pelos mercadores aos empuxões e pontapés, rugiam e mostravam os dentes roídos de escorbuto. Eram órfaõs quase todos, ou abandonados pelos pais; não sabiam os próprios nomes, nem donde vinham. Privados de memória, bestificados pela carência de carinhos, anestesiados pelo contínuo sofrer, eram esses pequeninos mendigos gravetos de uma floresta morta, despedaçados pelos vendavais, destroços de famílias, dispersadas pela ruptura de todos os laços de interesses e afetos.

Às vezes, a morte os surpreendia durante o sono, junto de um tronco ou na soleira de uma porta. Trespassavam como pássaros, sem contorções, sem estertor, sem um gemido, silenciosos, tranquilos, num sossego de morte, num sossego de liberdade."


A poderosa descrição acima está em "Luzia-Homem", romance naturalista de Domingos Olímpio ambientado no interior do Ceará, durante uma arrasadora seca na década de 1870.

A vida das crianças pobres de hoje parece ter melhorado só um pouco. Já outra passagem, que disponibilizo a seguir, me chamou atenção pela ideia, pelo visto imortal, da juventude transviada. "Ah no meu tempo..."




- (...) Sempre digo que essa criação d'agora não presta. Filhos muito senhores de si, por qualquer descuido, se desgarram. Os meus não punham pé em ramo verde. Muito amor, mas muito respeito e cabresto curto.

- Nestes tempos de miséria - ponderou um carpinteiro idoso - ninguém tem folga para cuidar da criação dos filhos. Vão se criando ao deus-dará, como filhos de pobre.

3 comentários:

ailton disse...

porra é isso?

eu disse...

um post?

Anônimo disse...

Quando ouvi Capitães da Areia também me deparei com uma descrição parecida. A diferença é que a vida das crianças na rua hoje está pior. Além da fome, intensificaram-se as violências, as drogas e a morte mais próxima e mais vulgar.