Sempre foi esquisita. Quando desconfiava de mim pedia para ler o meu pé esquerdo - nunca o direito, que seria sonso. Assim a quiromante de membros inferiores descobria minhas puladas de cerca. Maldito pé esquerdo.
Ao que se seguia longas brigas sermões DR eu vou te deixar eu vou te deixar eu sempre fui fiel você não me dá valor
A ironia é que quem a deixou fui eu. Porém, um dia, uns três anos depois, sonhei com ela e senti saudades. Liguei. O número já não era dela. Escrevi. Nada. Insisti, disse que ela podia me mandar tomar no cu, catarse ruim era melhor que catarse nenhuma. E aí veio a resposta.
Nenhuma palavra.
Mas imagens, sim.
Isabel mantinha um diário em forma de história em quadrinhos. Sem texto, só datas. Pornografia em aquarela. Descobri que me traía semanalmente, religiosamente. Como a filha da puta pôde me esconder tanto tempo que desenhava tão bem?
21.2.12
15.2.12
Assim como os matemáticos são, entre os acadêmicos, os tipos mais interessantes, os enxadristas constituem o grupo mais excêntrico entre os desportistas. A paulista Katherine tem 12 anos e é autora de um alfabeto. Nas horas vagas trucida adversários com seus bispos de âmbar. Famoso por seus truques, o russo Vassily Tamchuk achou por bem aprender turco. O andaluz Vallejo alterna 24 horas de sono com 96 de vigília. O norueguês Carlsen não come pizza com queijo.
Quem joga xadrez em altíssimo nível costuma ser competitivo ao extremo. Diz-se que estão sempre a andar sobre uma corda bamba sobre o precipício da loucura. O letão Aaron Nimzowitsch, ao antever uma derrota, subiu na mesa e gritou: "Como posso perder para um idiota como este?"
Quem joga xadrez em altíssimo nível costuma ser competitivo ao extremo. Diz-se que estão sempre a andar sobre uma corda bamba sobre o precipício da loucura. O letão Aaron Nimzowitsch, ao antever uma derrota, subiu na mesa e gritou: "Como posso perder para um idiota como este?"
4.2.12
Uma reprise e duas inéditas
Marta
e Leonardo se esforçaram, mas não conseguiram disfarçar a surpresa quando viram
Luciano, que nunca fora amigo íntimo do casal, bater à porta querendo saber se
podia deixar as coisas ali.
Pôde.
Acendeu um cigarro e começou a caminhar, inicialmente sem rumo. Depois decidiu
conferir se a oficina mecânica onde trabalhara ainda existia.
Viu
uma farmácia, dessas anabolizadas, 24 horas, ocupando o seu lugar. Observando
melhor, porém, viu que a oficina ainda estava lá, mas não era a mesma. A
farmácia tinha tomado dois terços do prédio onde fora a Auto Mecânica São
Geraldo.
Estava
aberta. Não viu rostos, só ouviu ruídos de risadas e televisão. Não queria ser
visto pelos antigos companheiros. Mas deixou-se perder por um instante em
lembranças e essa demora foi-lhe fatal.
-
Ei, aquele não é Luciano?
-
É sim, é ele!
Fora
descoberto. Não podia fugir. Nem queria falar. Chico, Valber e Nêgo sabiam que
ele sempre foi calado e meio estranho. Mas agora parecia mais.
Aos
quatro juntaram-se duas moças que não eram do tempo de Luciano. Formou-se uma
roda de expressões constrangidas, uns com as mãos nos bolsos, outros coçando a
barba, uns fitando o chão, outros se entreolhando.
Ninguém
falava nada e Luciano teve tempo para observar o lugar com mais atenção. Aquilo
parecia tudo, menos uma oficina: o chão limpo, as paredes cheirando a tinta
fresca e, finalmente, nenhum carro de capô erguido.
-
A gente tá reformando.
Essas
quatro palavras de Valber fizeram aquele grupo redescobrir a faculdade de
comunicar-se.
-
A nossa ideia é fazer uma oficina junto com um salão de beleza. Pra atrair a
freguesia feminina, né? E também os maridos que vierem com as esposas vão poder
dar uma olhada no carro enquanto esperam a patroa. Agora e gente enrica! – Emendou
Chico, procurando, sem sucesso, um eco de aprovação na face de Luciano.
-
Uma oficina e um salão num espaço que não é nem metade de quando era só
oficina... – divagou.
Nêgo tentou mudar de assunto:
-
Você se formou em quê mesmo?
Luciano
olhou para o amigo e viu, por sobre seus ombros, ao longe, a ponte.
Onze
anos antes, num dia ensolarado como aquele, notou o reflexo do sol poente no
rio pela janela do ônibus e pensou que em São Paulo jamais veria algo parecido
com aquilo. Mesmo se a poluição deixasse, não haveria tempo, não haveria
horizonte, não a veria.
-
Eu vou cortar seu cabelo, vem. – Propôs
Glória.
Luciano
obedeceu.
-
Você gosta de sorvete? Aqui na farmácia vende. Ritinha, quando eu acabar aqui
pega um sorvete lá pra gente tomar!
-
Uma bola de flocos, uma de coco e cauda de caramelo.
O
espanto foi geral e inevitável. Em qualquer outro contexto soaria como um
simples pedido. Porém, era a primeira frase que os velhos colegas ouviam sair
da boca de Luciano em mais de uma década. Ritinha e Glória já começavam a achar
que o homem era surdo-mudo ou doido.
O
recém-chegado, ao contrário, se mantinha inexpressivo, imóvel, fitando a si no
espelho.
-
Ela jogou o sorvete inteiro na minha camisa nova quando eu disse que ia
embora. Uma bola de flocos, uma de coco e cauda de caramelo. De casquinha.
***
O que dá em mim
É agonia
Se não fosse assim
Não viria
***
Assim você me mata
Por que você é assim?
Áspera, rude, antipática, tratante.
Você evita que as pessoas se aproximem de você.
Gostem de você.
Mas elas gostam mesmo assim.
Bom pra você.
Ruim pra mim.
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