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4.2.12

Uma reprise e duas inéditas


Marta e Leonardo se esforçaram, mas não conseguiram disfarçar a surpresa quando viram Luciano, que nunca fora amigo íntimo do casal, bater à porta querendo saber se podia deixar as coisas ali.

Pôde. Acendeu um cigarro e começou a caminhar, inicialmente sem rumo. Depois decidiu conferir se a oficina mecânica onde trabalhara ainda existia.

Viu uma farmácia, dessas anabolizadas, 24 horas, ocupando o seu lugar. Observando melhor, porém, viu que a oficina ainda estava lá, mas não era a mesma. A farmácia tinha tomado dois terços do prédio onde fora a Auto Mecânica São Geraldo.

Estava aberta. Não viu rostos, só ouviu ruídos de risadas e televisão. Não queria ser visto pelos antigos companheiros. Mas deixou-se perder por um instante em lembranças e essa demora foi-lhe fatal.

- Ei, aquele não é Luciano?

- É sim, é ele!

Fora descoberto. Não podia fugir. Nem queria falar. Chico, Valber e Nêgo sabiam que ele sempre foi calado e meio estranho. Mas agora parecia mais.

Aos quatro juntaram-se duas moças que não eram do tempo de Luciano. Formou-se uma roda de expressões constrangidas, uns com as mãos nos bolsos, outros coçando a barba, uns fitando o chão, outros se entreolhando.

Ninguém falava nada e Luciano teve tempo para observar o lugar com mais atenção. Aquilo parecia tudo, menos uma oficina: o chão limpo, as paredes cheirando a tinta fresca e, finalmente, nenhum carro de capô erguido.

- A gente tá reformando.

Essas quatro palavras de Valber fizeram aquele grupo redescobrir a faculdade de comunicar-se.

- A nossa ideia é fazer uma oficina junto com um salão de beleza. Pra atrair a freguesia feminina, né? E também os maridos que vierem com as esposas vão poder dar uma olhada no carro enquanto esperam a patroa. Agora e gente enrica! – Emendou Chico, procurando, sem sucesso, um eco de aprovação na face de Luciano.

- Uma oficina e um salão num espaço que não é nem metade de quando era só oficina... – divagou.

Nêgo tentou mudar de assunto:

- Você se formou em quê mesmo?

Luciano olhou para o amigo e viu, por sobre seus ombros, ao longe, a ponte.

Onze anos antes, num dia ensolarado como aquele, notou o reflexo do sol poente no rio pela janela do ônibus e pensou que em São Paulo jamais veria algo parecido com aquilo. Mesmo se a poluição deixasse, não haveria tempo, não haveria horizonte, não a veria.

- Eu vou cortar seu cabelo, vem.  – Propôs Glória.

Luciano obedeceu.

- Você gosta de sorvete? Aqui na farmácia vende. Ritinha, quando eu acabar aqui pega um sorvete lá pra gente tomar!

- Uma bola de flocos, uma de coco e cauda de caramelo.

O espanto foi geral e inevitável. Em qualquer outro contexto soaria como um simples pedido. Porém, era a primeira frase que os velhos colegas ouviam sair da boca de Luciano em mais de uma década. Ritinha e Glória já começavam a achar que o homem era surdo-mudo ou doido.

O recém-chegado, ao contrário, se mantinha inexpressivo, imóvel, fitando a si no espelho.

- Ela jogou o sorvete inteiro na minha camisa nova quando eu disse que ia embora. Uma bola de flocos, uma de coco e cauda de caramelo. De casquinha.

***

O que dá em mim
É agonia
Se não fosse assim
Não viria

***


Assim você me mata

Por que você é assim?
Áspera, rude, antipática, tratante.
Você evita que as pessoas se aproximem de você.
Gostem de você.
Mas elas gostam mesmo assim.
Bom pra você.
Ruim pra mim.

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