Marta
e Leonardo se esforçaram, mas não conseguiram disfarçar a surpresa quando viram
Luciano, que nunca fora amigo íntimo do casal, bater à porta querendo saber se
podia deixar as coisas ali.
Pôde.
Acendeu um cigarro e começou a caminhar, inicialmente sem rumo. Depois decidiu
conferir se a oficina mecânica onde trabalhara ainda existia.
Viu
uma farmácia, dessas anabolizadas, 24 horas, ocupando o seu lugar. Observando
melhor, porém, viu que a oficina ainda estava lá, mas não era a mesma. A
farmácia tinha tomado dois terços do prédio onde fora a Auto Mecânica São
Geraldo.
Estava
aberta. Não viu rostos, só ouviu ruídos de risadas e televisão. Não queria ser
visto pelos antigos companheiros. Mas deixou-se perder por um instante em
lembranças e essa demora foi-lhe fatal.
-
Ei, aquele não é Luciano?
-
É sim, é ele!
Fora
descoberto. Não podia fugir. Nem queria falar. Chico, Valber e Nêgo sabiam que
ele sempre foi calado e meio estranho. Mas agora parecia mais.
Aos
quatro juntaram-se duas moças que não eram do tempo de Luciano. Formou-se uma
roda de expressões constrangidas, uns com as mãos nos bolsos, outros coçando a
barba, uns fitando o chão, outros se entreolhando.
Ninguém
falava nada e Luciano teve tempo para observar o lugar com mais atenção. Aquilo
parecia tudo, menos uma oficina: o chão limpo, as paredes cheirando a tinta
fresca e, finalmente, nenhum carro de capô erguido.
-
A gente tá reformando.
Essas
quatro palavras de Valber fizeram aquele grupo redescobrir a faculdade de
comunicar-se.
-
A nossa ideia é fazer uma oficina junto com um salão de beleza. Pra atrair a
freguesia feminina, né? E também os maridos que vierem com as esposas vão poder
dar uma olhada no carro enquanto esperam a patroa. Agora e gente enrica! – Emendou
Chico, procurando, sem sucesso, um eco de aprovação na face de Luciano.
-
Uma oficina e um salão num espaço que não é nem metade de quando era só
oficina... – divagou.
Nêgo tentou mudar de assunto:
-
Você se formou em quê mesmo?
Luciano
olhou para o amigo e viu, por sobre seus ombros, ao longe, a ponte.
Onze
anos antes, num dia ensolarado como aquele, notou o reflexo do sol poente no
rio pela janela do ônibus e pensou que em São Paulo jamais veria algo parecido
com aquilo. Mesmo se a poluição deixasse, não haveria tempo, não haveria
horizonte, não a veria.
-
Eu vou cortar seu cabelo, vem. – Propôs
Glória.
Luciano
obedeceu.
-
Você gosta de sorvete? Aqui na farmácia vende. Ritinha, quando eu acabar aqui
pega um sorvete lá pra gente tomar!
-
Uma bola de flocos, uma de coco e cauda de caramelo.
O
espanto foi geral e inevitável. Em qualquer outro contexto soaria como um
simples pedido. Porém, era a primeira frase que os velhos colegas ouviam sair
da boca de Luciano em mais de uma década. Ritinha e Glória já começavam a achar
que o homem era surdo-mudo ou doido.
O
recém-chegado, ao contrário, se mantinha inexpressivo, imóvel, fitando a si no
espelho.
-
Ela jogou o sorvete inteiro na minha camisa nova quando eu disse que ia
embora. Uma bola de flocos, uma de coco e cauda de caramelo. De casquinha.
***
O que dá em mim
É agonia
Se não fosse assim
Não viria
***
Assim você me mata
Por que você é assim?
Áspera, rude, antipática, tratante.
Você evita que as pessoas se aproximem de você.
Gostem de você.
Mas elas gostam mesmo assim.
Bom pra você.
Ruim pra mim.
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